Escuridão no
quarto habitado por mim. Meu reduto, meu refúgio, meu santuário, corrompido por
uma presença que, só após a consciência de tê-la, percebo que sempre esteve
ali. Um velho guarda-roupa separa o quarto, no qual está a cama, com velhos
lençóis encardidos, e alguns outros apetrechos da sobrevivência noturna, do
pequeno vão da escada que antes guardava entulhos. Eu disse antes? O fato é que
não havia um antes. O tempo desde sempre era o agora. Nessa sombra mais noite
que o restante do quarto, ele se escondia. Era uma espécie de objeto aos meus
olhos, sentado em uma cadeira verde e vermelha de balanço, mas que me causava
indescritível pavor. Gritei por socorro: “não posso dormir nesse quarto!”. Chamei
por vezes pessoas para que o retirassem dali, como quem pede que matem e joguem
fora uma aranha ou coisa que o valha. Com uma simples diferença: ele já estava
morto. Era isso. Eu tinha um cadáver no vão da escada do meu quarto! Não posso,
no entanto, lhes dar maiores descrições, pois o vi apenas uma vez, quando
insistentemente uma voz me pedia para alimentá-lo. Vejam só! Alimentar um
cadáver! Estava inerte há anos... milênios! Mas assim o fiz na esperança de que
essa sensação angustiante passasse ou algo assim. Não fedia o ser putrefato,
lembro-me bem. Mas tinha partes do corpo cobertas por uma coloração entre o
cinza e o verde, como cimento e musgo. Causava-me nojo, confesso. Sua imagem
espantava. Era feio... Era murcho... E tinha uma língua pra fora que era o
detalhe que mais me amedrontava, mas, ainda assim coloquei-lhe na boca a
pequena refeição. Um pedaço de pizza, na verdade, como chocando a distante era
daquela criatura com uma fatia de agora. Soltei aos poucos em sua língua, porém
nenhuma reação aconteceu. Dei de ombros por um momento e caminhei de volta em
direção à cama, quando veio o baque. Vinha daquele lugar onde vivia meu
monstruoso algoz da escuridão. Ele começou a se mover, o que paralisou meu
corpo inteiro de espanto. O rangido da cadeira rasgava minha espinha e chegava
à nuca num calafrio glacial. Pé ante pé, vagarosamente, coração aos pulos,
mandíbulas travadas, cheguei novamente ao esconderijo sombrio. Já não me
parecia tão escuro. Era como se meus olhos houvessem se acostumado àquele
pretume todo. Conseguia ver perfeitamente seu corpo regenerado. Tinha poucos
cabelos, um pouco gordo, pêlos no peito, estava nu e muito, muito suado. Chegou
aos meus olhos dessa vez, para meu maior espanto, como um ser desejável. Mas
tão frágil! Meu primeiro ímpeto foi o de proteção. Avancei, me ajoelhei e lhe
acariciei o rosto, mãe de filho pródigo, afastando-lhe alguns fios de cabelo
que lhe escorriam pela testa. Fiz menção de abraçá-lo quando ele me olhou bem
nos olhos e com uma voz serena, mas perceptivelmente calculada, desferiu-me
o golpe: "Detesto ser acordado!".