terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A um ogro

Sentado à mesa ele buscava um novo corpo para amar ou despejar qualquer outro verbo sobre a carne alheia, visto que não compreendia ao certo o que significava tal sentimento. Rodeado de pessoas que despertavam seu desejo insone, continuava sem ninguém de fato, perdido em sua solidão de ogro. Havia passado por várias possibilidades, mas sem de fato vivenciar nenhuma por medo e burrice. Não acreditava, não adimitia que podia ser amado por alguém. Maltratara os sentimentos que os outros haviam lhe direcionado e, ao fazê-lo, fechava-se cada vez mais em seu soturno cazulo. Era de muitos conhecimentos e, ao ver-se vazio de amor, denominava-os de amigos. Pobre monstro perdido! Não sabia sequer distinguir as imagens verdadeiras das que lhe vinham por sua carência desesperada de afeto. Tinha os olhos voltados apenas a um pontinho perdido de horizonte. Seguia os dias a afogar-se em copos como fossem esses um refúgio para sua insessante aridez. Na pele trazia marcas de atentados que fizera contra si mesmo, trazia erupções de magmas escondidos desde há muito em seu estômago e trazia dores que ele próprio provocara. Suas noites de torpor lhe fizeram regredir a seu passado mais infante, sem brinquedo, sem afeto, perdido no vermelho espalhado da morte do pai. Chorava por vezes, o que o tornava ainda mais seco, mais sem propósito, mais de ninguém. Há imagens que nunca são esquecidas: um quadro bonito, uma bela mulher, um lugar de promessas, um inferno iluminado pela pólvora... Agarrava-se no trauma que lhe causara essa suposta queda para não subir mais a nenhum arranhacéu. E continuava, rastejando, a se esgueirar entre as pessoas, roçando-lhes as pernas, mesquinho, frio, carapaça suja, como um roedor qualquer.
Seus olhos de cão, famintos por piedade, tocaram meus passos há uma estação atrás. Não eram brilhantes seus olhos. Eram duas tochas frias, repletas de luxúria e nada mais. Como se tudo de mais importante fosse me devorar e depois, saciado, cuspir meus ossos em seu bauzinho particular, onde tantos outros repousavam já sem esperança de voltar a ver o sol. Esse monstro sem escrúpulos encontrou em minha pele uma forma de aconchego que eu mesmo desconhecia haver em mim. E dormiu, se lambuzou, fez festas e funerais. Tornou-se um ser quase afável. Dócil em poucos momentos; tempestade em muitos outros. Feriu-me a pele, bateu-me na face e despedaçou aos poucos todo o crédito que eu havia lhe endereçado desde seus olhos em mim. Era criar um monstro que sofre de esquizofrenia. Suas crizes me vinham quando eu menos estava preparado e, em sua realidade paralela, eu era o mais suculento de seus inimigos.
Me devorou os olhos para que eu não pudesse mais voar; atou-me os pés, para que, assim, eu não partisse do seu lado, mesmo depois de tanto ácido e agressão; agarrou-se em mim, sanguessuga voraz, até tranferir o meu líquido vital para o corpo de sua próxima vítima. Mas esqueceu, bobo Mefisto, de uma gota, pequena gota, no fundo falso de meu antes crédulo coração. E dessa gota fez-se mais e mais e eu me reergui em sua ausência, fugindo de suas amarras para correr, livre, por ruas até então desconhecidas por mim.
Hoje é liberdade em meu peito, e essas palavras são apenas uma espécie de exorcismo desse meu antigo demônio particular que hoje anda, perdido de si mesmo, a não conseguir outra vítima, pois deixou escapar, por essas burrices que acontecem aos monstros, o mais devoto e saboroso dos seus súditos. Perdeu as forças, coitado, e hoje repousa, ferido de desencanto, dentro de um copo, numa mesa de bar.

2 comentários:

  1. negro e denso...
    não sei se sinto medo ou pena...
    Fantástico!

    ResponderExcluir
  2. Ahhh amigo,que bom que saisses do teu soturno cazulo e em papel com tinta vens à
    tona sarcasticamente externar as tuas dores e poéticas alucinações,maravilhoso conto,comovente e abstrato sangrar muitas das vezes apelidado pelos poucos sensiveis e pelos que não possuem na veia o dom de assim como ti externar o que em teu peito se traduz em sangrar,apelidado de simplesmente buscar,porém as tuas alucinógenas são mais intensas,mais sentidas e mais eloquentes,buscas estas que quando não estão em nossos venosos vãos,se afogam felizmente ou infelizmente em um copo abandonado,repulsado,misturadas aos liquidos embriagantes das vãs ilusões,como é bom te ler!

    ResponderExcluir