terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Aguardando a Voz de Arthur


“-Eu me apaixonei aos poucos pela minha própria melancolia” – dizia Arthur aos poucos, como que escolhendo bem as palavras para que elas não quebrassem a beleza do que estava sendo dito. Apertava um pouco os olhos com seus Malboros, sempre presentes nos mais densos e nos mais pueris momentos, entre os dedos. As espirais de fumaça deixavam um cheiro agradável, porém sufocante, na cozinha abandonada. A casa era bem distante de qualquer civilidade. Ficava em uma montanha desabitada, bem próxima a um penhasco. Às vezes ouvia-se o canto de alguns pássaros, geralmente aves de agouro, que procuravam desesperadamente saciar sua fome noturna. “-Eu me apaixonei aos poucos pela minha própria melancolia!” – repetia como um devoto, socando a frágil mesinha, que se encolhia mais a cada golpe. As panelas penduradas, algumas com restos de comida de um tempo longínquo, refletiam parcamente a realidade daquele ser fabricante de formas desconexas no ar. Levanta-se abruptamente. Percorre o corredor soturno, arrastando as sandálias gastas, meros adornos de seu desespero. Fantasma pulsante de suas próprias frustrações, escorrega, viscoso em sua felinez, até um espelho quebrado. Rasga a escuridão com um estalo. Cessa a luz. Apenas uma ponta acesa próxima a seu rosto denuncia a imagem refletida. Quantas faces ali o fitavam! Quanta assombração o aguardava à espreita... Afasta-se sem, no entanto, virar as costas. O perigo de ser tragado lhe atingia as pálpebras. Chega, um pouco ofegante, ao objeto mais denso daquele lugar: sólida, mas um pouco amedrontada, com sua única pata de gata atropelada, a vitrola começa a miar dentro da noite, conduzindo-a a um sofisticadíssimo cio... “Southern trees bear strange fruit, blood on the leaves and blood at the root…”. Aos poucos, crescente em seu peito, uma angústia se debatia. Agora, com a mesma mão em que segurava seu segundo cigarro, golpeava o mecânico animal pelo medo que ele o provocava. Caído o cigarro, brasas queimavam a garganta daquela mulher que gritava, já conformada de seu suplício “Here is a strange and bitter crop” enquanto, batendo sua mão até o sangue, Arthur repetia: “-Eu me apaixonei aos poucos pela minha própria melancolia! Eu me apaixonei aos poucos pela minha própria melancolia! Eu me apaixonei aos poucos pela minha própria melancolia!”. Silêncio na casa. Novo estalo. Gato caolho. Assopra as cinzas da vitrola quebrada, repousa a pata em sua minúscula muleta. Levanta-se, vai até a porta de saída, examina a parede ao clarão da lua, sente a textura, se acostuma, esquece. Larga as sandálias. Pés no chão, fiéis à madrugada. Agacha-se. Apaga o Malboro num batente coberto de limo, infla os pulmões e, reerguendo-se num susto despretensioso, começa a cantar para a chuva, que se anuncia pelo cheiro.

terça-feira, 4 de outubro de 2011




Pessoas são pontos tangíveis.
Vão nos moldando a visão para vivê-las
para senti-las
para esquecê-las.
Perdão por não ter sempre respostas
minha vida é um gato aflito
que não sabe cair em pé!

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Eu poderia ter sido um poeta

se eu tivesse atentado ao tempo que agora faz

se eu tivesse olhado mais para os olhos do bem amado

se eu tivesse visto todas essas magias que todo mundo vê ao nascer do sol


Eu poderia, sim, ter sido um poeta

se eu buscasse os laranjas mais sórdidos de uma mordida banal

se eu mandasse flores, bombons e ciclones

se eu estivesse recluso a mim


Eu poderia, claro, ter sido um poeta

se eu abortasse todas as ideias de ser genial

se eu me atirasse ao poço infame das regras

se eu lixasse a pele à mão para escrever com mais afinco


Aí sim, eu seria um um poeta!

Rogo

Senhor de minhas disrítmicas canções
Lavrador de todas as minhas sementes de sonho
Marítimo navegante de meu corpo de esperas
Lúgubre poeta de meus silêncios mais sonoros
A ti canto um pouco mais
Porque o amor sempre espera mais um momento
pra fugir

Guerreiro de minhas batalhas mais vis
Sórdido gatuno de meus rubis esquecidos
Viajante audaz que esqueceu-se das partidas
E que só me chega
Tolo infante a deleitar-se com meus badulaques mais coloridos
A ti rogo um sonho a mais
Porque o amor sempre nos traz um crédito
pra fugir

Carta marcada em meu jogo de trapaças
Sutil caçador a golpear até a morte todas as minhas presas fáceis
Sólido rugido a entranhar-me as noites mais tépidas
Galante cantor a sussurrar-me em dias sem sol
cantigas bobas de acalanto
A ti suplico um dia a mais
Porque o amor nos permite extender desejos explícitos
de fugir

De fugir de todo mundo
De todas as casas
De todas as ruas
De todas as festas
e navegar tranquilos e sós
num restinho iluminado e esquecido
de mar.


















Ah, eu sonhava era com esses jovens amores rodrigueanos

De se desejar morrer com o ser amado

De se saber enfim o que é amar

Mas aí chegas tu

e me dissuades da ideia mórbida

e eu me vejo ferido

pelo doce desejo da vida!

Há pessoas que ficam mais belas com medo

com raiva

felizes

apaixonadas

dormindo

envergonhadas

você fica mais belo

quando olha pra mim...

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Do que sinto agora

O gato tem sete vidas
Meu amor apenas duas
A vida que chega meteórica
e a vida que vai esmaecida.
Qualquer outra forma de vida surgida nesse interim
é mero pretexto.
Vida é explosão
É vulcão incansável.
É contraluz quando tudo era holofote.

sexta-feira, 15 de abril de 2011



Da última vez que vi Maria

Ela já não tinha mais os olhos azuis

Tinha apenas umas pálpebras cerradas

E uma boca mole, repleta de água

Nem parecia Maria

Era um corpo magro, longo, baldio...




Essa sumarenta troca de fluidos corpóreos

Fruta espremida suando às avessas

Entregando-se ao tronco de sumo mais branco

Viscoso suco

Receptáculo de desejos maciços

Folhas cobrem o momento mais ímpar de gozo

Escondem

O inebriante caldo do prazer alcançado.


Para estar em teu pulso

Para marcar o teu dia

Para passar pro teu filho

Para ter medo de água

Para ter bigodes disformes

E olhos que brilham no escuro


Para apitar ao teu gosto

Para lembrar-te de tudo

Para abraçar-te seguro

Para ser reprogramado

E zerar o teu tempo em mim


Para brilhar quando um raio de sol

Para ser guardado e esquecido

Para apressar o amor

Para encerrar o teu dia

Para ser levado de ti.

Esperas




Era procurar demais, dentro da minha interminável carência de ermitão. Era um desgaste a cada nova boca que eu tocava, a cada novo corpo que me chegava em madrugadas de álcool e saliva e cremes e calabouços. Era esperar que cada novo ser que me vinha trouxesse com ele as cores todas que o amor é capaz de desfolhar aos olhos dos apaixonados. E as cores me traziam aos olhos uma magia única; magia essa que só eu sentia, sem retribuições, sem reciprocidades, e eu me via só. Sozinho a caminhar numa avenida, na hora do rush. Foi então que tudo se deu: a procura sessou. Hoje é não procurar mais. Hoje é espera. Esperança de que um dia, sob alguma distante e mágica circunstância, se abra pra mim a mais doce e estonteante primavera. Sem buscar, sem marcar hora. É aguardar que toquem todos os telefones, que cheguem todas as cartas, e me chamem pra receber um navio cheio de flores que vem chegando. E só assim correrei de novo por todas as ruas, caminhos capazes de me levar, sonhador que sou, a receber meu mais novo convidado, de pé, à proa, chegando com um sorriso de aconchego, no meu deserto porto de esperas.

domingo, 27 de março de 2011

sábado, 26 de março de 2011




Vagavas sem ritmo algum por meus pensamentos
Eras perfeito e quase disforme
Ah, essa velha mania de gostar das falhas...
Eras vento forte, rendido à minha tempestade de silêncios
Eu, domador de tuas desenfreadas cavalgadas
Eu, leve solfejo entre tuas pernas incansáveis
Tu, ah, tu eras todo armadura e fortaleza
Hoje te quedas às minhas vistas
Prisioneiro sem voz
Bufão sem caminho próprio,
rendido aos caprichos dos teus.





Era tudo premeditado
essa coisa de te conhecer
vieram os mais variados profetas me confidenciar
travaram batalhas até a morte
para defender suas previsões
e, no entanto, todos estavam certos
o destino dizia você em meu caminho.





Falta tanto, nesse silêncio de supercine, alguém com quem eu possa debater todas essas epifanias no meu peito, alguém em quem eu possa despejar essa minha imensa solidão.


Quem é essa gralha que todas as noites te corteja
Essa ave de agouro
Esse mar de brios
que acha merecer um fio que seja
da tua rica atenção
essa sombra a perturbar-te o sono
perto da janela, num galho de árvore?



segunda-feira, 21 de março de 2011

Pequeno dicionário de risíveis explicações




Promiscuidade

Transbordo desnecessário de almas sem dono...


Trem

Famigerada enguia terrestre a engolir pessoas...


Vinho

Urina farta de um amor do passado que já morreu...


Bicicleta

Tigre mecânico anoréxico e cheio de preguiça...


Leque

Borboleta de uma asa só sem personalidade própria...


Avião

Vagalume transportador de almas que visita as janelas...


A traição é uma abelha cujo mel azedou.



Bebedeira:

Simples gaivota

Que vai

Na noite sem dono

Buscar um ninho

De tarântulas

Para conversar...



Espelho

Era tudo mentira:

Eu não estava mesmo deste lado...


Gato

Inimigo soturno das borboletas

e dos exercícios físicos...


Janela

Ponto de ônibus do vento



Os anjos são borboletinhas de cabelo...


Semáforo

Andorinha estática que muda de cor.


Você, sempre a razão de eu ficar um pouco mais...

Domingo qualquer


Acordei com vontade de chorar

Absorvi teu suor bordado em meu travesseiro

Falei coisas tristes

Faxinei a casa

Bebi um conhaque

Pensei na vida.


Os gatos do mercado

mortadela, mel, almofada e prato

O vendedor se esgueira entre minhas pernas

Queijo, rapadura e leite

leite, leite, leite

pires

largo o vendedor satisfeito

e vou gozar do meu mais soturno inverno.


Os rios daqui são como nervos expostos na cidade

Pulsam à mínima proximidade de um contato alheio...


quinta-feira, 3 de março de 2011

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Ecclesiae


A igreja navegante
bóia sem saber o rumo que traçara
A igreja flutuante
não tem direção
Para onde ela vai, quem saberá?
A igreja vai subir
Vai subir aos céus?
Não:
ao primeiro andar.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011


Da procura incasável por uma canção que te pudesse dizer, restou-me nada
Que as canções já falam o que querem
Eram palavras minhas o que me faltavam
E elas nunca me chegaram até então
Noites insone
Um imberbe sentimento de aproveitar-te
Sem saber como traduzir-te
E sabendo, ainda assim, que não havia tradução possível.
Recorri a todos os líricos e simbolistas e (pasmem) cubistas
E nada me vinha.
Pobres poetas esquecidos!
Medíocres por não te terem conhecido
Eu, mais que eles,
Pálido de dó dos antigos arautos,
Conheci a verdadeira, a mais pura poesia:
Teus olhos esmaecendo seu brilho em minha cama
A procurar teu sono.

De um alvorecer de outubro


Acordei com mais um poema
Fincado nos pulsos
Coloquei o teu retrato
Na página mais bonita
Daquele nosso livro de poesias
O café lembrou teu gosto
Antes de escovar os dentes
E o cobertor ainda quente
Do calor do teu carinho
Minhas lágrimas no tapete
Umedecendo tuas pegadas
Sim... eu era feliz...


Depois de muitos cigarros
Brotou o poeminho
Do fundo do cinzeiro.
Brotou fedendo, coitado!
Cheio de cinzas e queimaduras.
Quem me dera, poeminho querido
Cicatrizar-te
E me redimir
De tanto mal que te fiz
Deixando-te tantas bolhas de agonia
E riscas de estrelas sobre tua pele.
Perdoa-me, poema amigo
Ter-te esquecido dessa forma
É que eu estava tão feliz e distraído
Que nem notei o teu penar...