quinta-feira, 30 de dezembro de 2010


Enlouquecedor o silêncio da noite
Noite deveria ser barulho
Noite deveria ser um corpo a nos roçar a carne
No entanto essa falta de luz
Esse grito tecido de vento
Sem ser frio, sem ter cor
Sem nenhum assobio...


Essa pantera desdentada, rugido solto em um solfejo, me visitou hoje à noite. Ela veio mansa, quase agradável, e se apoderou de meu estômago e membros. A cama esquecida era só um cenário de tortura ao qual eu não desejava voltar. Banhei as paredes com saliva tentando encontrar um vestígio; uma sombra, uma voz, um cheiro que fosse, para me acalentar madrugada a dentro. E me veio silêncio. Não o silêncio recíproco do descanso; mas o avassalador silêncio das salas de espera. Eu quieto, a um canto encostado, suplicando uma voz amiga, um afeto devido, uma mordida, quem sabe. Mas não. Tudo tornou-se não. Ela me mastiga, me cobre de baba, me atormenta a pele mas, ah, Deus, por que, por que essa impossibilidade de me devorar de vez?

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Lá vai o cortejo fúnebre
Se arrastando
Opaco de espanto
Pela ruazinha colorida...
Quem morreu?
-Tua quimera mais bonita
guardada
numa última morada
em uma caixinha de música...


As baratas não são mortas por explosões nucleares.
As bombas não são desativadas por baratas.
Nem tudo é perfeito, frente ao fato de que
Vivas almas podem brincar em playgrounds de fogo
Feitos sobre resquícios de corpos queimados.
Tudo na mais santa paz.
Deus sorri aconchegado numa poltrona de relva.
-Muito sarcásticos esses seus lábios!
Talvez necessidade.
O sol chora lâminas de fogo
Matando de inveja os mais pomposos dragões.
E quem são os pássaros?

O Gato no Lixo

Era quarta-feira, talvez. Fazia um frio incomum nessa cidade. Esses frios repentinos que chegam no verão para soprar medo no coração dos desavisados. Frank estava deitado em sua cama, relembrando antigos assuntos que haviam acabado de ser discutidos na televisão. Era um semblante de contemplação o que se via ali. No teto do pequeno quarto que se extendia entre cozinha, sala e banheiro, manchas de infiltrações lhe davam ideias de monstros disformes. Como poderia um ser humano amar ainda hoje sem se tornar um animal por isso? Era tudo tão somente instinto nesses dias que vêm se estendendo pelos varais do presente! Havia sido traído em sua carne e dignidade. Havia sido trocado por um jorrar momentâneo e isso lhe doía os olhos, já a fim de não ver sequer as manchas à sua frente. Por muito tempo permaneceu ali: sozinho, parado, fechando e abrindo os olhos na indecisão do querer ver. Cena quase igual ao flagrante anterior. Custa muito acreditar nos olhos quando, antes disso, acreditamos em alguém. Fisgada no peito, cabeça pesando, buscando o chão para fugir dali. Então moveu-se. Bateu a poeira dos ombros, religou a TV e foi ao banho. Eram outros já seus olhos. Olhos injetados de sangue e furor. Olhos desejosos de uma não-solidão que há muito não era aceita por ele. A água desceu, fria, quase com desdém, pelo seu corpo. Os músculos se enrrigeceram um pouco mais. De onde estava conseguia ver, na tela, uma mulher que repetia uma frase boba, que dizia muito pouco sobre a solidão dessa cidade. Que sabia ela? Procurou seu melhor perfume. Não havia um melhor. Apenas umas gotas restantes de alguma fragrância barata qualquer. Resto de saliva esquecido num frasco. Umedeceu a fronte e o púbis, vestiu-se rápido. Medo talvez de que evaporasse aquele restinho de excência. Saiu, deixando a mulher falando para ninguém. Agora ela iria começar a perceber a solidão que pregava! Calçada molhada ainda, resfriada pelo inverno: não é bom pegar sereno. O sapato rangia baixinho, mastigando as pedras das ruas de lama. Seguiu obstinado até encontrar uma outra alma perdida no meio da noite, entre caixas, latas, vísceras. Lembrou de uma antiga frase de um escritor gaúcho. Os olhos se cruzaram, mais por curiosidade que por desejo. Mas como andam grudados, rosto colado, dividindo o mesmo fone, esses dois sentimentos! Que ser poderia, igual a ele estar vagando sozinho em uma noite assim? Seria mesmo uma possibilidade de calor para sua pele, como pensou há um segundo? Olhou firme a sombra na face dessa criatura envolvida pela escuridão. Olhou e, de tanto buscar com os olhos, agora já desinteressados do não-ver, encontrou no fundo do abismo que existia naquele rosto liso de cor dois pontos de luz. Uma luz tênue, quase desfalecida, mas que o engoliu no momento em que ele quis ver. Estava lá seu sonhado monstro. Não precisava mais das figuras sujas de seu teto, nem da saliva perfumada de seus frascos. Era completo agora, devorado por um deus de sombra que o aquecera a pele com uma língua doce de dragão sedento. Era tudo verdade. Ele estava certo o tempo todo: aquela moça da tv não sabia mesmo nada sobre solidão!

Do Coração


Meu coração pobre e mal-cheiroso,
Esfomeado marginal de esquinas,
Lança o olho atrás de tua bondade.
Dai esmolas de afeto a esse ser
Dai abrigo tépido a esse corpo
Formai um sonho esquecido da miséria
Do qual ele não precise acordar.

Esse menino vagabundo que trago dentro do peito qualquer dia desses vai bater à tua porta e pedir-te um sopro de carinho. Marginal que é, se tu não o deres, te agredirá e quererá tomar-te à força, roubando teu néctar para si. Sacies a fome desse esfomeado trovador. Não deixes que ele morra de frio à porta de tua casa. Convide-o para entrar, ofereça um café, dê um sonho com o qual ele possa dormir em conforto. Finge que reza por ele ao pé da cama e, caso ele acorde, cante para que ele possa novamente dormir. E depois se livre dele, caso queira, que ele já estará satisfeito de ter passado um momento que seja desfrutando, mendigo modesto, de uma pontinha de tua atenção.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Masmorra


Tudo muito, muito fétido ali. Motel? Qual o quê! Poderia ser mais propício chamar de masmorra ou de qualquer coisa que o valha. Ao lado, logo na entrada, um antigo ventilador de pé acompanhando, mudo, a lerda solidão do homem por trás do balcão. Lista de quartos, de preços e de tempos. O dinheiro gasto no vinho anterior não permitia muitas regalias naquele local.
-Vamos pegar esse?
-Sim...
-Tem que pagar adiantado!
-Pois não, senhor...
As olheiras marsupiais davam um tom mais compreensivo ao porquê de tal humor.
-Quanto tempo?A noite inteira?
-É... A noite inteira.
-Tá aqui a chave! Primeiro andar, fim do corredor.
Escuridão cortada em pontos não interligadas por luzes amarelas e tépidas. No caminho, uma escada espiral: o início facilitador de uma vasta encadernação. Portas enumeradas, gemidos, odores, frio no estômago, destino alcançado. Ranger... Ao acender a luz que, ainda hesitante, lhes mostrava seu primeiro cenário de amor, o susto de ser ali uma tradução de toda a curta história do casal.
Num canto quase esquecido do quarto, uma barata parecia estar em prontidão, enumerando os amantes que tiveram a coragem de entrar ali. A televisão, sem botões, impossibilitava mudar a cena de penetração que inundava o quarto de nojo e êxtase. A nódoa amarela dos lençóis demarcava o território dos anônimos. O dedo do mais novo trouxe de volta a escuridão ao quarto, cortada apenas por uma janela que parecia ter sido tirada de um antigo castelo da Transilvânia, enorme vitral de horrores, e que os trazia, ainda mais forte, esse gosto de assombração da primeira transa.
Lentamente e ainda não muito certos do que faziam, começaram a tirar as roupas e ia se mostrando aos poucos, através de todo aquele pretume, a tímida silhueta dos dois.
-Deita!
-Vem!
O cio dos corpos esfregava pêlos e peles no lençol encardido. Tudo muito rígido. A pele se arrepiando um pouco ao passar da língua, vasculhadora de prazeres escondidos. Dedos se entrelaçam. Pernas se perdem, sem rumo. Lança em brasa eriçada pelo mormaço exalado pelos dois. Força. Pernas mais e mais se tornam cúmplices. Dois corpos se transformam em parte única de tão dolorosa atuação e, depois de séculos revelados em poucos minutos, mostra-se, rendido aos aplausos da escória, esse líquido sujo e perfumado que escorre do prazer alcançado.
Os arfares dão lugar a um silêncio sepulcral. O cansaço assume forma de nojo. O amor tão palpável anteriormente se torna desejo de solidão. Solidão do outro. Solidão de si mesmo. Baque! Medo dessa solidão se eternizar. E assim nascem ali, mudos e lacrimejantes, dois bebês amaldiçoados pelo instinto de homem que há dentro deles. Pelo instinto humano da busca. Os corpos se esbarram eventualmente na cama suja por medo, talvez, da atitude do abandono. As narinas se forçam, desesperadas, tentando achar ainda resquícios do gôzo. Encontram, no entanto, já reestabelecido, o mofo do local. Se torna cada vez mais nítido o fedor da separação. E, num ato de bravura quase heróica, o mais velho encosta os lábios na pálpebra esquerda do outro, entrelaça seus dedos nos dele e quebra, pedra na vitrine, o silêncio entre os dois:
-Se incomoda se eu fumar?
-Não.
-Quer um?
-Sim.
Na fumaça, solta para o breu, quase imperceptível até aos olhos da barata, já adormecida de espanto, o desespero de terem se apaixonado um do outro a puros pêlos.

Metrô


Se eu me atirasse nos trilhos do metrô
que diriam os transeuntes, essa gente apressada,
se atrasando para seus destinos,
de mim, já sem mais esse,
caso eu me atirasse aos trilhos do metrô?

Quanto sofreria a pobre mãezinha
numa longínqua cidade, sozinha,
órfã às avessas
quando eu me atirasse nos trilhos do metrô?

E o amado presente
saberia nos jornais
atiraria pequena lágrima na pequena nota
de que me atirara aos trilhos do metrô?

lembrariam meus amigos
quanto tempo ainda
da minha queda de outrora
cada vez que chegassem à estação
atrasados para seus destinos
por eu ter me atirado aos trilhos do metrô?

A criança que eu fui
estaria contente
já livre da enfadonha velhice
cabelo loiro e fino ao vento
se eu me atirasse nos trilhos do metrô...

Gim


Fazia noite já. Deitada em sua cama esfregava os rubros dedos na caverna inexplorada de suas fantasias. O jorro suave de suas entranhas aos poucos se mostrava. Arrependida da noite anterior em que desprezara os sutis galanteios de seu comparsa mais bonito.
-Não vivi o que havia de viver.
Súbito silêncio depois do gemido mais grave. Sabia o que restara de toda pompa antes oferecida: um esgueirar-se entre os lençóis sujeitos a toda sorte de cores e odores de suas pernas agora já adormecidas do furor.
Levanta-se. Pega o copo com água que sempre deixara ao lado de sua cama. Num gesto quase desesperado arremessa o líquido entre as coxas. Larga o copo no chão, umedecendo o tapete com seus últimos resquícios.
-Foto na parede de um astro do rock dos anos setenta que me olha. Não fez pior no teu tempo? Morreu de tanto olhar. Olhar e não tocar. Tocar com a pele, mas nunca com os ossos.
Osso é duro. Nervo é duro. É duro permanecer insone quando a única razão de te fazer acordada a esta hora está nos braços tépidos de uma dama qualquer. Saciando sua boca e nuca e coxa nas diretrizes sem amanhã de alguém que te quer só por hoje. De alguém que te quer sem depois. Ergue as mãos. Toma entre elas aquele vestido do qual ele sempre gostou. Esfrega entre os dedos a alça fina. Veste-se. Sai de casa. Quem dera um lugar pra beber um Gim! Como gata assustada vai-se arranhando nas paredes escuras da cidade já quase adormecida. Encontra uma praça. Banco frio do sereno. Aquieta as ancas largas e felinas. Vozes distantes. De onde virá a voz dele? De onde virá a essa hora? Virá? Avista de longe um vulto cambaleante, mancha negra na indecifrável paisagem. Aproxima-se, criando forma. Ele? Ele? Qual o que! Apenas mais uma criatura noturna no sortilégio de uma noite de solidão. Faz charme, tenta uma dança de pupilas. Tenta um sorriso amarelado. Tenta vestir-se aos olhos que a despem.
-você gosta de rock?
-prefiro girassóis.
-tenho gim na minha casa.
-eu tenho uma foto do Jimmy.
-eu quero fugir para o Nepal.
-eu quero um cigarro.
-me mostra a nuca?
-tenho três estrelas.
-doeu pra fazer?
-tinha bebido demais.
-me mostra o Jimmy?
-tenho medo de estranhos.
-tenho medo de gatos. Alergia, talvez.
-eu queria saber.
-eu não sei o que eu queria.
-eu não queria mais nada.
-então vamos.
-é tarde. Os pássaros...
-eles sabem pra onde ir.
-eu também.
-vamos.
Afastaram-se no quase dia que fazia e sentiram o negro furor no peito da coincidência. Encontrar-se assim, exasperados e sem rumo, fez nascer entre as coxas dos dois o novo propósito. A vontade sem freios de descobrir uma nova cor na manhã que se aproximava. A cor dos dedos adocicados do prazer atual. Puro, individual. Sem antecedentes.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010


Esses santos de barro
as minhas mãos que os criam
e quem crererá?
Quem?
Todos os meus chapéus de palha
são mero pretexto
pra não olhar pro alto...

A um ogro

Sentado à mesa ele buscava um novo corpo para amar ou despejar qualquer outro verbo sobre a carne alheia, visto que não compreendia ao certo o que significava tal sentimento. Rodeado de pessoas que despertavam seu desejo insone, continuava sem ninguém de fato, perdido em sua solidão de ogro. Havia passado por várias possibilidades, mas sem de fato vivenciar nenhuma por medo e burrice. Não acreditava, não adimitia que podia ser amado por alguém. Maltratara os sentimentos que os outros haviam lhe direcionado e, ao fazê-lo, fechava-se cada vez mais em seu soturno cazulo. Era de muitos conhecimentos e, ao ver-se vazio de amor, denominava-os de amigos. Pobre monstro perdido! Não sabia sequer distinguir as imagens verdadeiras das que lhe vinham por sua carência desesperada de afeto. Tinha os olhos voltados apenas a um pontinho perdido de horizonte. Seguia os dias a afogar-se em copos como fossem esses um refúgio para sua insessante aridez. Na pele trazia marcas de atentados que fizera contra si mesmo, trazia erupções de magmas escondidos desde há muito em seu estômago e trazia dores que ele próprio provocara. Suas noites de torpor lhe fizeram regredir a seu passado mais infante, sem brinquedo, sem afeto, perdido no vermelho espalhado da morte do pai. Chorava por vezes, o que o tornava ainda mais seco, mais sem propósito, mais de ninguém. Há imagens que nunca são esquecidas: um quadro bonito, uma bela mulher, um lugar de promessas, um inferno iluminado pela pólvora... Agarrava-se no trauma que lhe causara essa suposta queda para não subir mais a nenhum arranhacéu. E continuava, rastejando, a se esgueirar entre as pessoas, roçando-lhes as pernas, mesquinho, frio, carapaça suja, como um roedor qualquer.
Seus olhos de cão, famintos por piedade, tocaram meus passos há uma estação atrás. Não eram brilhantes seus olhos. Eram duas tochas frias, repletas de luxúria e nada mais. Como se tudo de mais importante fosse me devorar e depois, saciado, cuspir meus ossos em seu bauzinho particular, onde tantos outros repousavam já sem esperança de voltar a ver o sol. Esse monstro sem escrúpulos encontrou em minha pele uma forma de aconchego que eu mesmo desconhecia haver em mim. E dormiu, se lambuzou, fez festas e funerais. Tornou-se um ser quase afável. Dócil em poucos momentos; tempestade em muitos outros. Feriu-me a pele, bateu-me na face e despedaçou aos poucos todo o crédito que eu havia lhe endereçado desde seus olhos em mim. Era criar um monstro que sofre de esquizofrenia. Suas crizes me vinham quando eu menos estava preparado e, em sua realidade paralela, eu era o mais suculento de seus inimigos.
Me devorou os olhos para que eu não pudesse mais voar; atou-me os pés, para que, assim, eu não partisse do seu lado, mesmo depois de tanto ácido e agressão; agarrou-se em mim, sanguessuga voraz, até tranferir o meu líquido vital para o corpo de sua próxima vítima. Mas esqueceu, bobo Mefisto, de uma gota, pequena gota, no fundo falso de meu antes crédulo coração. E dessa gota fez-se mais e mais e eu me reergui em sua ausência, fugindo de suas amarras para correr, livre, por ruas até então desconhecidas por mim.
Hoje é liberdade em meu peito, e essas palavras são apenas uma espécie de exorcismo desse meu antigo demônio particular que hoje anda, perdido de si mesmo, a não conseguir outra vítima, pois deixou escapar, por essas burrices que acontecem aos monstros, o mais devoto e saboroso dos seus súditos. Perdeu as forças, coitado, e hoje repousa, ferido de desencanto, dentro de um copo, numa mesa de bar.

Aos Amigos Distantes

Não quero falar de solidão
Acompanhariam-me minhas palavras
E então perderia-se o encanto.

Quero falar das pessoas que me trazem a redenção.
Pessoas que o tempo nos traz sem propósito
e que fazem tanta falta quando se afastam.

É de falta meu poema
Bobo, sem rimas, sem grandes sentimentos
É de falta de sentir falta
Sinto a ausência de mim
Não dessas ditas pessoas.
Falta de mim quando estou com elas.
Falta do que eu sou e do que elas me fazem ser.
E é de não ser mais pólem
que me nasceu esse poema
Chato, infrutífero, infecundo, sem ponto final...

Tu já sabes
todo esse peso que há sobre as pessoas
curvando-as e deixando suas faces
cada vez mais perto do chão
é o meu amor aumentando.

Poemeto de Inverno I


Um soco na boca do estômago
Sentimento de quem fica
Uma ave disforme e sem penas
Saía pela porta parecendo dizer até
Um pouco de rio nos olhos estáticos
Um tanto de mar
Separava o bote, esfomeado por terra,
Do farol orientador.
Era quase noite
E era quase igual ao frio que agora faz
A tempestade se fazia além das telhas
Apenas testemunhava ali, escondido de pavor,
Um pobre guarda-chuva,
Morcego molhado escorrendo atrás da porta.

Perdi o verso livre
Todo verso em mim é retido
Imerge na lagoa de meu ventre
E diverte-se, animal cruel,
A saltar-me dos olhos
E ser novamente absorvido pela pele.

Sábado


Espremeu um pouco os olhos na frente do espelho. Talvez por medo de encarar o que via, distanciou-se sem tornar a abri-los. A um canto daquele banheiro, sujo grades amontoadas de garrafas vazias. Há quantas décadas haviam sido consumidas? Que bocas de atuais cadáveres o líquido ali armazenado havia saciado? Coração aos pulos pela quantidade já ingerida, esbarrou inocentemente em uma daquelas macabras caixas. Era de muito antes de seu nascimento, acusava uma data impressa. O caminho de volta à mesa parecia ter-se alterado. Tinha contado seus passos. Trinta? Não mais que trinta passos. Mas agora era longínquo e quanto mais andava, mais parecia que a mesa se reduzia a esses tamanhos do distante. Estava só. Disso bem se lembrava. Não arranjou companhia para aquela noite de sábado, assim como havia acontecido nos últimos trinta anos. Era o que se chamava por aí de solitário convicto. Mas não por querer, não por ter escolhido isso, não. Pra ele era mais como uma espécie de maldição jogada não sabia bem por que Deus ou Diabo sobre ele. Tirou um cigarro do bolso enquanto andava. A tocha, a brasa, a cinza, o chão. Acabara com todas suas baforadas e a mesa de origem ainda lhe fugia. As pessoas ao redor pareciam congeladas no meio do tempo que, a seu ver, já era desconfortavelmente longo. Mas tudo se distanciava. As paredes cresciam um pouco mais a cada segundo. Os sons se extinguiam, as luzes cessavam e ele só enxergava aquela mesa boiando na imensidão do nada. Era como se estivesse submerso e cada passo seu movimentasse uma invisível onda que empurrasse seu objetivo para mais e mais distante. Coçou a cabeça num gesto desesperado. Outro passo. Parou um pouco. Alimentou fartamente os pulmões. Tornou a andar. Outro cigarro. Apressa o passo. Corria já quando tropeçou em algo. Foi arremessado ao chão de uma forma arrebatadora. Os olhos bastante doloridos novamente enxergaram a luz. Uma luz turva e um cheiro desegradável. À sua frente, um espelho descascado; de um lado, grades cheias de garrafas vazias e do outro o mocinho que o estava atendendo, água fria na cara, tentando reanimá-lo.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010




"-Marginal!" - me gritam
E o meu coração responde, estático de medo:
"-Deixa-me! Que posso fazer se não me deste sequer uma moeda de tua atenção?"
É quando me chegas,
sabatinando meus desejos mais maciços,
que vê-se o quão acido é
o teu sorriso a não ser engolido,
cravado na minha garganta.



O ciúme é uma mordida na pedra.




O gato se esgueira
Suave passo
Silencioso arfar
Extensão do meu braço
Quando procura
No escuro
O teu corpo.

Solidão
Catavento sem cor
Sem pétala
Sem uma brisa qualquer.

Saudade
Vertigem de febre que assoma o corpo todo e arrepia a nuca.

Poemeto Esquecido na Gaveta


Daqui de onde estou
Na minha estúpida solidão de monstro
Não reconheço mais meus medos
Não tenho medo de nada
Quase
Talvez apenas daqueles que ferem
Porque têm medo de amar.