quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Gato no Lixo

Era quarta-feira, talvez. Fazia um frio incomum nessa cidade. Esses frios repentinos que chegam no verão para soprar medo no coração dos desavisados. Frank estava deitado em sua cama, relembrando antigos assuntos que haviam acabado de ser discutidos na televisão. Era um semblante de contemplação o que se via ali. No teto do pequeno quarto que se extendia entre cozinha, sala e banheiro, manchas de infiltrações lhe davam ideias de monstros disformes. Como poderia um ser humano amar ainda hoje sem se tornar um animal por isso? Era tudo tão somente instinto nesses dias que vêm se estendendo pelos varais do presente! Havia sido traído em sua carne e dignidade. Havia sido trocado por um jorrar momentâneo e isso lhe doía os olhos, já a fim de não ver sequer as manchas à sua frente. Por muito tempo permaneceu ali: sozinho, parado, fechando e abrindo os olhos na indecisão do querer ver. Cena quase igual ao flagrante anterior. Custa muito acreditar nos olhos quando, antes disso, acreditamos em alguém. Fisgada no peito, cabeça pesando, buscando o chão para fugir dali. Então moveu-se. Bateu a poeira dos ombros, religou a TV e foi ao banho. Eram outros já seus olhos. Olhos injetados de sangue e furor. Olhos desejosos de uma não-solidão que há muito não era aceita por ele. A água desceu, fria, quase com desdém, pelo seu corpo. Os músculos se enrrigeceram um pouco mais. De onde estava conseguia ver, na tela, uma mulher que repetia uma frase boba, que dizia muito pouco sobre a solidão dessa cidade. Que sabia ela? Procurou seu melhor perfume. Não havia um melhor. Apenas umas gotas restantes de alguma fragrância barata qualquer. Resto de saliva esquecido num frasco. Umedeceu a fronte e o púbis, vestiu-se rápido. Medo talvez de que evaporasse aquele restinho de excência. Saiu, deixando a mulher falando para ninguém. Agora ela iria começar a perceber a solidão que pregava! Calçada molhada ainda, resfriada pelo inverno: não é bom pegar sereno. O sapato rangia baixinho, mastigando as pedras das ruas de lama. Seguiu obstinado até encontrar uma outra alma perdida no meio da noite, entre caixas, latas, vísceras. Lembrou de uma antiga frase de um escritor gaúcho. Os olhos se cruzaram, mais por curiosidade que por desejo. Mas como andam grudados, rosto colado, dividindo o mesmo fone, esses dois sentimentos! Que ser poderia, igual a ele estar vagando sozinho em uma noite assim? Seria mesmo uma possibilidade de calor para sua pele, como pensou há um segundo? Olhou firme a sombra na face dessa criatura envolvida pela escuridão. Olhou e, de tanto buscar com os olhos, agora já desinteressados do não-ver, encontrou no fundo do abismo que existia naquele rosto liso de cor dois pontos de luz. Uma luz tênue, quase desfalecida, mas que o engoliu no momento em que ele quis ver. Estava lá seu sonhado monstro. Não precisava mais das figuras sujas de seu teto, nem da saliva perfumada de seus frascos. Era completo agora, devorado por um deus de sombra que o aquecera a pele com uma língua doce de dragão sedento. Era tudo verdade. Ele estava certo o tempo todo: aquela moça da tv não sabia mesmo nada sobre solidão!

2 comentários: